terça-feira, 26 de junho de 2007

Aventuras lusitanas

São 15:30, 11:30 no Brasil. Estou no trem (comboio, como dizem aqui) que vai de Lisboa a Coimbra, onde darei palestra amanhã para 150 empresários locais. Tive sorte – estou sentado numa poltrona super confortável, ar-condicionado, lugares vagos à minha volta... uma delícia. Como dizia um amigo meu, “se dei bem”.

Portugal é uma mistura interessante. Ruelas estreitas de paralelepípedos confundem-se com viadutos modernos; carros de última geração parados em cima da calçada por falta de lugar para estacionar; punks, hippies (ainda existem!) e senhores de gravata misturam-se como se fosse a coisa mais normal do mundo. E deve ser mesmo, pois você encontra a mesma mistura em Paris, Nova York e Montreal.

O atendimento nos lugares sofre da mesma mistura, assim como em qualquer lugar do mundo. Mas aqui é especial. Da primeira vez que viemos (Marília e eu), levamos uma bronca do taxista por não termos troco – como se a responsabilidade de levar troco fosse nossa, clientes. Essa postura é comum por aqui, como se estivessem fazendo uum favoire a lhe atender. A postura mais comum é a do “os incomodados que se retirem”. Embora os cartazes digam o contrário.

A reação inicial é a de querer entrar num bate-boca, como se minha eloqüência ao defender a satisfação do cliente, o bom atendimento e lógica capitalista do lucro pudesse vencer uma discussão dessas de maneira racional. Algumas coisas são culturais e, num país europeu, isso significa séculos de tradição arraigada. Está no DNA das pessoas e na educação que receberam, nos exemplos que vivenciaram de pais e avôs, nas experiências que eles mesmos passaram pela vida. Nestes casos vale a máxima “Quando em Roma, como os romanos”. Resumindo: leve troco quando andar de táxi! Eles não querem se incomodar – quem tem que se incomodar é você, cliente.

Outro exemplo típico do foco voltado para seu próprio umbigo aconteceu ontem, nos Armazéns do Chiado. Ao comprar um sorvete, tentei pagar com as moedas que tinha, para ver se me livrava de algumas que já estavam começando a pesar no bolso. “Não tem uma nota de 5?”, perguntou-me a atendente. “Porque?”, perguntei – “não prefere que eu pague com moedas, para facilitar e ter troco?”. “Não”, respondeu ela – “assim tenho menos moedas para contar na hora de fechar o caixa”. De uma honestidade ingênua muito charmosa, mas totalmente amadora.

Não vou nem começar a falar dos espaços para não fumantes (ou fumadores, que eu acho até mais correto). A discussão toda aqui em Portugal gira em torno do “direito” que os proprietários têm de decidir se um estabelecimento é não-fumador, fumador ou misto. Esta é a terceira vez que venho e até agora não vi uma única vez a palavra “cliente” ser usada para definir os rumos da questão. Que tal perguntar para os mais interessados, e os que trazem dinheiro para a empresa, se eles querem ou não querem conviver com os vícios dos outros?

E por falar em foco no cliente, acabo de ser abordado por um velhinho que pede meu bilhete. Descubro constrangido que estou indevidamente na primeira classe. Nem sabia que tinha primeira e segunda classe! Por isso estava tão confortável – alguma coisa tinha que estar errado, era bom demais para ser verdade.

Explico que ninguém me disse que existia a possibilidade de ir para a primeira. O velhinho me dá uma bronca tipicamente lusitana: “Todo mundo sabe que existem diferenças de classe!”. Pergunto se todos os trens em Portugal tem 2 classes. Ele responde “obviamente que não”. Logo, tento mais uma vez racionalizar, como se pode saber se um trem é primeira ou segunda classe? “Mas este aqui é, e pronto!”, marcando o final da conversa. Pergunto se não posso pagar a diferença e continuar aqui. Não, não pode – tem que ir para seu lugar. Saio levemente irritado com a pequena humilhação que todos sentimos secretamente ao sermos convidados a nos retirar da primeira classe, como se ali não pertencêssemos.

Ao sair, noto que o vagão está claramente marcado com um “1ª classe” numa placa da entrada. Só que o cérebro humano está treinado para ver o que ele procura ver. Alguém que sabe das duas classes certamente veria a placa. Alguém que não sabe, passa direto. É mais ou menos como dirigir num país estrangeiro que tivesse uma placa de preferencial completamente diferente. Ou um “Pare!” escrito em japonês.

Chego ao vagão de 2ª classe e vejo que até que não é tão ruim. Poltronas apertadamente confortáveis, como nos aviões e trens do mundo inteiro. A única diferença é a temperatura – este carro está desconfortavelmente quente. Tento abrir a janela e não consigo. Pergunto ao velhinho bilheteiro, quando passa novamente, se pode abrir a janela. “Não pode”, responde ele. Mas não vou facilitar. “Porque não?”, insisto. “Porque está fechada!”, responde com sua lógica lusitana. E sai. Já somos inimigos de morte, se tivéssemos espadas estaríamos duelando em pleno vagão.

Levanto e descubro o controle do ar-condicionado. Abaixo tudo e coloco-o ao máximo (ou mínimo, no caso). O carro imediatamente esfria. Pouco antes de chegarmos a Coimbra, o velhinho descobre e pergunta em voz alta: “Quem foi que mexeu no ar?”. Antes que me dê tempo de levantar e bradar com orgulho anarquista revolucionário “Fui eu!!!”, descubro que era apenas uma pergunta retórica. Ele provavelmente sabe a resposta de qualquer forma. Começa a resmungar impropérios para si mesmo, de maneira tão inaudível e carregado de sotaque lusitano que não entendo nada. Mas sei o que está pensando. Sorrio de maneira cínica, e sinto-me infantilmente vingado. Touché. :-)

3 comentários:

Unknown disse...

Você conseguiu captar o espirito do português como ninguem.
Vivo com minha esposa aqui em Portugal a pouco mais de 6 meses e como sempre fomo ligados à area comercial, ficamos apavorados ao nso deparar com situações como essa. Aqui não existe qualquer preocupação com a satisfação do cliente. Se você vai comprar algo na loja e pergunta ao vendedor(quando existe um) se tem tal produto, ele diz que não tem e vira as costas, não faz o minimo esforço para oferecer algo similar...nadinha.
já ouvi dizer que os brasileiros aqui tornam-se campeões de venda simplesmente porque tem a "malicia" no sangue e sabem surpreender um cliente ao oferecer um produto melhor.
Enfim...quando vier aqui novamente verá que nada mudou, pode acreditar.
Parabens pelo BLOG, virei visitante assíduo.

Anônimo disse...

Raul e Luiz,

li o que escreveram, com muita atenção.

Sendo Português, a sensação com que fiquei, foi aquela que sentimos quando alguém diz mal da nossa família. É duro e desagradável.

Muito mais ainda, quando o que dizem é VERDADE!!!!!

Não vos sei dar a razão clara, deste tipo de procedimentos. Sei que existe um longo caminho a percorrer.

Também vos posso dizer que sendo vós profissionais de vendas, estarão muito mais sensíveis a todas as atitudes de qualquer prestação de serviço.
Em Portugal, existem profissionais excelentes a vender na rua, ao balcão, por telefone, etc.

Estou determinado a encontrá-los e escrever um livro com os seus depoimentos que poderão ser muito úteis, ao velhinho do comboio, e à senhora do armazém e a muitos outros profissionais que por aí andam desmotivados.

Posso conto convosco?...

PS: Raul moro em Coimbra, que pena não ter sabido da tua vinda cá. Quando voltas?

Um abraço

Paulo Silva Só
motivabizz@gmail.com

Anônimo disse...

Viva,

Sou português e quero felicitá-lo pela clareza com que descreveu o espírito lusitano.

É refrescante ver alguém escrever assim sobre a sua experiência em Portugal - só é pena que poucos portugueses (percentualmente...) se apercebessem do quão real este texto é.


Provavelmente cometi um pequena imprecisão... nasci em Portugal, sou filho, neto e sobrinho de portugueses, o meu bilhete de identidade nacional diz que sou, de facto, português. Mas a verdade é que nunca me identifiquei com nada do que vejo à minha volta. Talvez por isso veja e sinta o mesmo que o Raul viu e sentiu.

Por isso também me regojizo tanto quando visito um país onde mais de metade das "chatices" que me perseguem insistentemente por aqui, desaparecem, como a vizinha Espanha, a França, a Holanda, a Inglaterra ou a Alemanha (só na Bélgica não me senti muito bem "enquadrado").

Em Portugal, no comércio (atendimento ao cliente, em geral), parece que andam todos a "fazer o frete", a trabalhar porque tem de ser - "é uma chatice, mas tenho de pagar as contas" - e são poucos, infelizmente, os empresários que investem em recursos humanos, mas quando fazem, nota-se (FNAC, Adidas, El Corte Inglés, alguns restaurantes e algumas bombas de gasolina, por exemplo).

De resto, não me parece haver esperança... como alguém já comentou, também aposto que se voltar aqui daqui a 30 anos, vai estar tudo na mesma.

Enfim!...


Cumprimentos,

Fernando Martins